Sofia Vive

I

Toalha ao ombro, mochila ás costas, livro na mão. A urgência causada pelo seu atraso esqueciam-no dos anteriores três dias de dúvidas sobre se devia se quer ir. Não seria um bocado um desperdício de tempo? As horas ao sol, a dialética de família e a leviandade burguesa não eram certamente as atividades mais socialmente úteis ou produtivas. Lisboa mesmo em Agosto oferecia-lhe um leque atividades aparentemente cruciais que punham um pesado remorso em qualquer prazer mundano. Já nem mesmo essas lhe pareciam suficientemente relevantes, mas certamente mais necessárias que ir de férias. A juventude escasseava-se, jamais a queria perder ao sol, parado, sem criar, sem evoluir, sem contribuir. Afinal a vida é só uma. Ainda assim com um bilhete não consentido na mão apressava o passo para não perder a carruagem. Tia Sofia como sempre obcecada com a boa receção de quaisquer convidados já em tudo antecipava a chegada de Manel. Preparava as ementas e as marinadas, os lençóis e as almofadas, e até combinava com Tomás (ainda fresco de tirar a carta) horas para o ir buscar (se soubesse não a tinha tirado!). O Tio Zé e a Tia Bé desencorajavam repetidamente este entusiasmo de Sofia. — Sofia, não é preciso nada disso...; Apesar de eles mesmo terem deixado o bilhete e uma nota no hall de entrada na noite anterior, já conheciam demasiado bem as indecisões do próprio filho para saber que a probabilidade de ele cumprir com o planeado era praticamente nula. O que tornava todo este esforço de Sofia inútil e por isso custoso de observar. — Já sei, vou fazer um arroz de pato, que o Manel adora!; — Por favor, Sofia! Não se dê ao trabalho...; Já estava de saída para o mercado. Manel tentava concentrar-se na leitura. Vejo a minha auto-consciência não em mim próprio, mas no outro. Como estariam o Xico, e o Duarte, e o Tomás e a Leonor? Eles lá se iam cruzando a noite lisboeta. Como podia uma amizade que era tão intima e próxima no verão reduzir-se no inverno a um distante e sucinto cumprimento e um não respondido 'tas bom?'?. Este outro, por existir fora de si próprio, tem a sua auto-consciência apenas em mim. Já planeava as suas respostas controversas aos temas estapafúrdios da Tia Sofia. Do que se lembraria desta vez? Repudiaria neologismos? Acusaria o Camões de homosexualidade? Julgaria as suas escolhas literárias? Tudo era possível. e tanto o outro como eu somos apenas esta consciência de estarmos fora de nós próprios. — Manel! - abordou-lhe Francisco, um velho e inesperado conhecido que o notou ao passar no corredor da carruagem. — Com que então à procura do Geist? - apontando para o livro e sentado-se na cadeira à frente; — Não me digas que a classe turística do alfa pendular não é o sítio ideal para encontrar o espírito dos tempos?; — Tão ideal como qualquer outro, no sentido em que nem deve ser procurado. Sinto sempre que o idealismo alemão é simplesmente um rebranding pós iluminista de ideologia católica. Quem estaria disposto se quer a dar atenção aos argumentos de Aquinas ou aos devaneios de Agostinho na era da razão pura? É uma tentativa de regresso à metafísica que ironicamente lhe veio pôr fim.; — Têm pelo menos a minha atenção.; — Não fosse esse fio de prata uma mera opção estética. - ... - Além disso só alguém muito deturpado consegue comparar monarquias, escravatura, feudalismo ou industrialização com a beleza anárquica das sociedades pré-agrícolas e ainda assim encontrar progresso ao longo da história.; — Ou alguém muito... comodista. Eu de facto gostava mesmo de te ver na selva, a caçar para comer, esse teu gosto burguês iria encaixar perfeitamente.; — Pobreza, sobre-ocupação laboral, controlo social e guerra não são a minha definição de conforto.; — Já eu pessoalmente encontro profundo conforto em não ser comido por um leão.; — Talvez seja afinal esse o nosso problema, demasiado conforto.; — Também calma lá, estamos em classe turística, eu sinto os teus joelhos neste preciso momento.; Talvez por ter sido lembrado do desconforto daquele constante e suado contacto físico levantou-se. — Bem, foi bom ver-te, Manel! Vou voltar para o meu lugar. - fê-lo. Não estava à espera deste encontro e voltou à leitura sem muito pensar nele. Isto é amor, e sem se saber que o amor é simultaneamente uma distinção e a sublimação desta distinção fala-se vaziamente dele. Talvez o Francisco tenha mesmo razão. Fechou o livro.

II

— Então Manel? Conte-nos lá o que anda a fazer de tão importante que o impediu de vir logo ontem com os seus pais! - provocou Sofia; Não sabia o que responder visto saber ser o único na mesa para quem passar os dias a pensar, ler e escrever parecia mais útil uso do seu tempo que empregue em quaisquer outros ofícios laborais ou de lazer. — Estou sempre muito ocupado. - respondeu; O silêncio falou por si, visto que havendo alguém desocupado naquela mesa seria certamente o Manel. Mas Leonor veio acudir —'Tá ótimo, tia!; uma mentira amarela que todos vieram corroborar papagueando o conhecido slogan. De facto a tia merecia louvores - nem que seja pelo esforço, pela mesa impecável, e o habitual savoir-vivre dum bom anfitrião, mas certamente não pelo pato seco e o arroz estorricado. Se há coisa que o Manel gostava era de ver os seus pratos preferidos arruinados por Tia Sofia. Havia qualquer coisa naquele esforço falhado que o admirava. Uma falta de noção sobre seus defeitos aliada uma perseverança indestrutível que o deixavam perplexo. O tema inicial era geralmente sugerido pelo Tio João que começava sempre com uma das suas indignações importadas do semanário mais recente. Mimetizava sempre o colunista mais controverso regularmente sobre um tema político. O Duarte e o Xico eram sempre os primeiros a intervir numa espécie de ritual de exibição masculina — Tio, não me diga isso! Sabe que... - ou — Discordo, Tio. Não viu que...; Tomás adorava vir a contribuir para estas discussões com o pai e há anos que as ouvia atentamente. As mulheres da família ouviam com profundo regojizo estes atos de emasculação. Ouviam nestas vozes grossas discutidoras de orçamentos de estado, situações geopolíticas, ou fantasmagóricos marxismos culturais e ideologias de género uma espécie de show afrodisíaco semelhante a qualquer outro espetáculo de exibição masculina (como corridas de toiros, desporto ou pancadas...), um pouco corajoso e um pouco ridículo. Já o repúdio de Manel por informação mediática atual talvez pelo seu valor volátil e efémero ou pela sua distancia temática do que realmente lhe importa levavam-no a pensamentos distantes. Às vezes analisava os comportamentos gerados pelas discussões: as veias na testa do Tio João quando se enervava com modernices, o smirk jocoso e o tronco confiante típico do Xico conscientes das posições absurdas que tomava, e por vezes até se convencia que o tópico até para os interlocutores era irrelevante e que não passava de um rito dialético cujo o propósito lhe era desconhecido. Já decidira intervir uma ou outra vez salientando o cerne fundamental da discussão ou evidenciando as incongruências dialéticas, mas a reação de desconforto e desprezo foi tal que decidiu jamais voltar a fazê-lo. Eventualmente aguçados pelos copos de vinho e já com frutos secos na mesa os temas de Sofia iam tomando rédea. Era geralmente aqui que os homens já sem os temas de atualidade para discutir se levantavam, deixando na mesa o trio maravilha. Sofia tinha um dom para instigar conversas longas, de uma simples nota feita por Manel sobre se auto-censurar com certos familiares (adivinhem quem) conseguiu dar mote para as horas seguintes de conversa: — Acanhe-se, Manel. A única censura realmente eficaz é a auto-censura. Por isso é que caem todas as ditaduras, mas nunca o capitalismo. - apesar de parecer uma crítica, foi dito em tom de elogio. - Stalin encontra-se com um opositor e com um chibo, o opositor diz 'morte ao stalin' e o chibo diz 'não sabes que não se pode dizer mal do stalin?'. Adivinhem quem é que ele mata?; Intrigada pela questão, Leonor imediatamente responde. — O opositor claro, como ato de punição, para dar o exemplo. É o clássico enforcamento público dos desertores. 'Isto é o que vos acontece se não se conformarem!'; — Aí é que está enganada, Leonor! Matou o chibo. O chibo é quem evidencia a propaganda.; Manel alegrava-se pela cara Leonor começar a ficar ligeiramente irritada com esta ratoeira. — Então diga-me lá que raio de ditador ia manter o seu opositor a espalhar a mensagem anti-regime?; — O melhor, Leonor. O melhor dos ditadores. O opositor é o grande incentivador da auto-censura. Nenhum regime prospera se não houver a ilusão de liberdade, e o opositor é o grande perpetuador dessa ilusão. Matar um chibo só evidencia a natureza propagandística da ditadura. Só convence as pessoas de que estão presas e garanto-lhe que quem está preso normalmente sente raiva e revolta-se rapidamente para deixar de o estar.; — Mãe, isso não faz sentido nenhum. - retorquia já mais irritada - E deixar o opositor pregar as suas ideias? Isso sim é uma ameaça ao regime!; Como Leonor o acudiu no início do jantar Manel decidiu retribuir o gesto — E matar o chibo é matar quem lhe é fiel. Que mensagem é que isso vai passar aos outros apoiantes?; Leonor irritada levantou-se da mesa sem nada dizer e desapareceu. Manel desconhecia esta faceta de Leonor. Estava mais velha e mais convicta. Já Sofia nem reagiu e prosseguiu direcionada a Manel. — Pense no típico trabalhador disciplinado, acha que ele gosta de trabalhar? Abomina. São os desertores os maiores incentivadores desse comportamento. Ele chega a casa e vê o ultimo blockbuster anticapitalista ou lê Focault e Horkheimer, mas no dia seguinte quando o despertador toca ele vai trabalhar. Ele acha que é uma decisão livre, o opositor prova-o. Ele não precisa de um estado autoritário que o censure: ele é esse estado. Não são as sociedades disciplinares que prosperam, são as sociedades de controlo.; Leonor volta agora nuns calções coloridos e uma t-shirt larga de pijama com a boca cheia de pasta de dentes, escovando-os. — U mue naum psebe qu uss tupo du rutueras sum suupur dusugruduvus?; Manel ria-se. — Querida, assim não a percebo! - diz Sofia escondendo um riso; — Ai! - ainda mais irritada em passo ainda mais pesado regressa à casa de banho; — Eu não sei se se pode considerar auto-censura em ambos os casos, tia. Porque o ato não conformista tem as suas consequências. O trabalhador que não trabalha não recebe dinheiro ou estatuto, nem recebe aprovação ou apoio o stalinista que não apoia o regime. O opositor pode não morrer a tiro, mas morre à fome.; Entretanto já de dentes lavados Leonor regressa e volta sentar-se. — Então segundo a mãe todos nazis matavam judeus porque decidiam? Por alguma razão divina metade Alemanha de repente tirava prazer de matar judeus? Não foi certamente fruto de propaganda, coerção, autoritarismo, ameaças, e mortes de desertores a tom de exemplo!; — Claro que não. O Hitler era um péssimo ditador. Uma ditadura que dura 10 anos? Muito tinha a aprender tivesse lido uns livros de história. Já o capitalismo é eterno.; E a discussão prosseguiu. Discutiu-se o fim do império romano, a doença da tia, e até o sentido da vida. — Meninos, falem baixo que eles já devem estar a dormir.; E em gritos sussurrados Leonor insistia — ((Estou te a dizer, Manel. Estás enganado.)) ((Toda e cada pessoa, coisa, ou seja o que for que existe é absolutamente importante, no grande e no pequeno esquema das coisas.)) ((É como um tabuleiro de xadrez, basta tirares-lhe uma única peça, e o jogo deixa de fazer sentido.)); Sofia olhava para esta discussão com orgulho por ter sido instigada por ela. Como se estivesse a passar para a próxima geração aquilo que ela mais preza. Por saber que aquele bichinho, aquele entusiasmo, aquela curiosidade não vai com ela. Sentiu que completou o seu trabalho, pelo menos por esta noite. — Bem meninos, estou cheia de sono, vou dormir. Leonor por favor vá só à garagem buscar as mantas para o Manel para ele não ter frio.; — Oh, deixe estar, tia! Está imenso calor, não preciso de nada disso.; — Leonor! - fez-lhe um olhar; Leonor retorquiu-o afirmativamente. E seguiram de pés frios e descalços por fora da casa até ao anexo onde estavam as mantas. — Já nem me lembrava que tinha saudades destas discussões.; Elegantemente Leonor baixava-se sobre o guarda-roupa em busca das desnecessárias mantas. — Também vou ter muitas.; Manel lembrava-se das conversas que acabara de ter como se fossem memórias longínquas. Pôs as mantas que ela lhe deu ao ombro. — Obrigado.; Leonor fechou o portão, mas a meio ficou preso. — Ah, eu ajudo!; E de mãos agarradas á extremidade do portão, repetidamente faziam força mas sem resultado. Nesta força conjunta a empurrar o gigante verde de metal, Leonor agarrou acidentalmente no pulso de Manel. E o mundo de Manel rapidamente encheu-se de cor, o ar ficou mais leve, o tempo mais lento e a força imediatamente veio. Boom! Fecharam o portão. — Bom teamwork! -...- Boa noite, Leonor! Até amanhã!; Deram um beijinho sorridente e seguiram para as suas camas. Deitado com as mantas no chão, Manel já só pensava nas expressões e ideias dela, no tom da sua voz, nos seus movimentos subtis, na paixão com que falava, e nos olhos brilhantes de entusiasmo. Era enorme o prazer que sentia só por saber que este ser existe, e que hoje por sorte divina existia sobre o mesmo teto que ele.

III

Apesar de para o típico transeunte veranil neste caminho diário para a praia estas famílias aparentarem uma semelhança absoluta, para quem está dentro da cultura tornam-se óbvias e radicais as discrepâncias ideológicas. Nós somos mais minimalistas: resumimos o arsenal a uma toalha para secar, uma água para hidratar e um livro para pensar. Já eles levam todo um extenso e completo estaminé que inclui raquetes, cadeiras desmontáveis, chapéu de sol, cestos de malha, pequenos sacos térmicos, bolas de rugby ou vólei e até livros de história (escusado será dizer que meramente decorativos). Nós jamais usamos protetor solar, porque o nosso bronze natural é o melhor protetor, e sabemos estar na praia sem apanhar um único escaldão. Já eles insistem em pôr e repôr ao longo de todo o dia um aromatizado fator dez com um nome tropical (urucutu?) e ainda assim é raro o dia que não voltam a casa com as bochechas, ombros (e até o escalpe no caso do tio João) encardidos. Para nós a areia é natural e totalmente bem vinda, a toalha para sentar/deitar no areal é meramente facultativa, gostamos de a sentir no cabelo, nos sapatos, na pele, e quando éramos mais novos até a comíamos. Já eles parecem ter-lhe uma fobia aguda, esperamos eternidades que limpem os pés, assistimos com regojizo à raiva do tio quando entram grãos matreiros no interior do carro que se assemelha à de quem acabou de ser infestado por uma praga de bicharada venenosa. E ainda deitados canonicamente apreciando os nossos pãezinhos enrolados em prata olhamos com desdém as suas escolhas gastronómicas vindas duma lancheira pseudo vintage onde de pequenos recipientes de vidro vinham umas completíssimas saladas (com feijão até) que devoravam com quentes talheres de alumínio naquele areal. Mas tinham todo um dia pela frente por isso as divergências tinham que ser aceites, nós lá nos esforçávamos para aturar o cheiro a creme, e eles para sucumbir ao impulso animal de nos tentar limpar a areia do corpo. E ao longo do dia falava-se sobre tudo desde política a escolhas de roupa interior (adivinhem quem prefere licra). Alternavam-se às conversas longos silêncios meditativos apreciadores de sol. Foi num desses que Manel decidiu levantar-se para ir à agua, e que Leonor segundos depois replicou. Claro que o estado da família era de atenção plena, e mesmo de costas ao longo da descida até ao mar, Manel ouvia no silencio da audiência familiar um estrondoso burburinho telepático. Manel sentou-se junto à rebentação à procura de coragem para entrar na água fria. Leonor juntou-se a seu lado. — É me impossível conceber que a Antígona se possa ter suicidado.; — É assim tão importante? Ela estava condenada à morte de qualquer das maneiras.; — Claro! Cessar de existir por vontade própria ou por vontade alheia são coisas radicalmente diferentes! Iria alguma vez a mulher mais obstinada em relação, atenção à sua condenação à morte, depois causar a própria morte? Parece-me absurdo se quer pôr essa opção.; — Acho importante referir que essa opção, é a que é descrita no texto.; — Está descrito nas palavras do servo. Quem nos diz que ele não mente?; — Porque é que haveria de mentir?; — Parece-me óbvio. Para proteger o Creon. Foi claramente Creon que a matou. Daí toda a culpa. Ele não está chateado porque o pai a condenou a morte. Ele está chateado consigo próprio por dar maior primazia à honra do pai do que ao seu amor por Antígona.; — Então porque havia de se matar? Ele não se matou pela dor de perder a sua amada Antígona?; — Estamos a falar do mesmo Creon? O que quando o pai lhe diz que vai matar a mulher ele nem a defende? Alguma vez Creon se mataria por amor? Se é que ele se quer a ama. Ele matou-se por culpa. Típico gajo.; — Conheces muitos rapazes que se tenham suicidado por culpa de não honrar os pais?; —Ui, bem pior que isso.; Adorável. — E tua interpretação é mais válida que a de todos os académicos do período helénico que se dedicaram a traduzir e pensar o texto?; — Eu posso não saber ler grego, mas sei o que é ser uma mulher obstinada e posso garantir-te com certeza mais que absoluta que a Antígona não se suicidou. -...- Bem, vou à água! Vens?; Foram.

Ficou tempos deitado sozinho na areia a tentar apreciar a já aborrecida beleza pré crepuscular da paisagem mas apreciando maioritariamente as memórias do olhar convicto e apaixonado de Leonor. Como poderia alguém tão ardosa e vivamente importar-se com algo tão distante e abstrato? Como podia alguém querer tanto saber da interpretação de uma narrativa escrita há dois milhares de anos? Achava-o absolutamente lindo. Também ele queria sentir-se assim sobre alguma coisa, seja o que for. De regresso à toalha e só lá estava a Tia Sofia. — Já viu, Manel? Muito dizem gostar de praia, mas depois nunca cá estão nas melhores horas.; O resto da familia teve de ir preparar o jantar, querendo mesmo nas férias impor uma espécie de rotina. — Haja alguém que me perceba, tia.; Sofia no entanto levantava-se. — Manel, venha comigo.; Suspeitando, pegou na toalha e seguiu atrás dela por toda uma escadaria natural que subia uma falésia. — O que é que anda a inventar, Tia?; — Vai ver que vale o esforço; Manel via a fragilidade de Sofia naquele quase trilho de escalada e temia acidentes. Afinal de contas se algo acontecesse era ele o responsável. Todos sabiam que a Tia estava num estado em que estes riscos eram no mínimo desaconselhados. Mas ao ver todo aquele entusiasmo dentro do seu típico lenço naquele dia cor de laranja era incapaz de intervir. Este nervosismo agravou-se depois da Tia o encorajar a saltar uma pequena cerca metálica com um gigantesco sinal triangular legendado 'PERIGO: sujeito a coima'. — Vá Tia, já chega de maluquices, vamos voltar.; E começou a descer, mas quando olhou para trás percebeu que fê-lo só. Já bem à frente via Sofia em passo demasiado descontraído para quem anda em altíssimos rochedos sobre o mar. — Sempre me saiu cá um medricas, Manel!; Trepou a cerca, irresponsável seria deixar a tia ir sozinha. E os metros de avanço foram diminuindo quando a tia finalmente parou no topo da mais alta e mais saída falésia, ofegante e agachada aos joelhos mas com os olhos na vista. E que vista. — De facto vale o esforço, tia. - disse para quebrar o silêncio, mas não obteve resposta.; Por isso focou-se na paisagem, no som das ondas, no cor de rosa do céu, na leveza do ar inspirado, tudo coisas que outrora o preenchiam, mas que agora o deixavam simplesmente vazio. Parecia-lhe insuficiente? Para que serve esta beleza? Sim é lindo, e então? Não pode ser só isto. Até que ouve uma espécie de soluçar. Olha para a Tia que de cara fortemente enrugada de esforço e tapada pela mão repetidamente ofegava um choro pesadamente silencioso. Apesar da causa óbvia, Manel não sabia mesmo como reagir, movimentou-se numa espécie de tentativa de abraço incompleta, mas sabia não haver auxilio possível. Sentia um desespero profundo por não saber acudir a tia mas acima de tudo por não saber porque existe. E durante uns segundos dignou-se a ouvir sobre o pôr do sol do topo das falésias as lágrimas sôfregas de Sofia, parado, ileso e impotente. O choro eventualmente cessou, e o silêncio de Manel e Sofia tornou-se longo e calmo. Partilhavam qualquer coisa imaterial. Uma paz ou um desabafo. — É isto, Manel. O que anda à procura. É isto. O espírito dos tempos, o motor da história, o geist, chame-lhe o quiser. É isto. Só isto. É isto e é lindo.; Isto o quê? perguntava-se Manel. O que quereria a tia dizer com isto? A que é que se refere? À paisagem? Ao lusco fusco? Haverá algo mais clichê? Gostava de a compreender.

IV

Era a missa do sétimo dia e o padre apesar dos vários jantares em que lá esteve em casa, do envelope cheio de dinheiro, e dos convites para praticamente todos os casamentos da família conseguiu pronunciar mal apelidos e nem se dignou a usar um carinhoso 'Tia' como sufixo, o que tornava todos aqueles rumores de demência discutidos à entrada da igreja menos disparatados do que inicialmente pareciam. Ninguém quis ver o resultado da autópsia, nem Leonor. — Mudei de opinião em relação à Antígona. - confessou-lhe isolando-o brevemente do grupo - Afinal é irrelevante. Ela lutou com toda a sua vontade, usou toda e cada palavra com intenção, - a voz tremeu-lhe - e ficou até ao fim, até hoje, dois mil anos depois.; Desta vez Manel soube exatamente como reagir, e imediatamente acolheu no seu ombro aqueles olhos lacrimejantes, e sentiu-os como nunca nada tinha sentido. Ao entrar na igreja viu uma silhueta familiar. — Francisco?; Era de facto ele. — Como assim conhecias a Tia Sofia?; — Como assim conhecias a Professora Sofia? - respondeu imediatamente; Já nem se lembrava da sua profissão.; — Das melhores professoras que já tive, Introdução a Hegel.; Quer dizer que a Tia sabia? Este tempo todo? E durante a comunhão pensava em tudo. Tudo isto. Nas vidas que ali estavam. Os acidentes que as cruzavam. As narrativas que pregavam. Nos pôres do sol em falésias. Nas conversas noturnas. E nos arroz de pato estorricados. De olhos fechados via os dedos cruzados de Leonor, via os lenços coloridos na cabeça de Sofia, e via o geist. E ajoelhado perante as incertezas da vida ao lado de Leonor finalmente percebera o que Tia Sofia queria dizer. E de repente era como se estivesse ali mesmo, entre Manel e Leonor. E o mantra repetia-se É isto e é lindo, É isto e é lindo. É isto e é lindo.

Escrito em 20 de Outubro 2023