O Punk Não Morreu

Estou outra vez numa fase em que o punk está ressonar de uma forma forte comigo - tão forte que estou a ponderar seriamente cortar e pintar o cabelo de azul.

Sempre quis ser punk. E na verdade sempre fui. Nunca tive uma mohawk azul, correntes nas calças ou piercings no nariz. O meu pai até se recusava a abrir a porta de casa nas manhãs em que eu vestia as minhas tão amadas e pretas skinny jeans - proibia-me de ir para a escola nesses modos e que enquanto não as fosse trocar, ali ficaríamos - felizmente nunca revistou a mochila onde as escondia depois para mal soasse a campainha do primeiro intervalo ir à casa de banho trocá-las.

Nunca soube andar de skate (até porque era proibido nos salesianos), mas dominava andar com um skate - na mão pendurado. Não era uma questão de estilo ou de moda - era uma mensagem: Ninguém manda em mim, eu faço o que me apetece. Sempre tive boas notas e nunca impliquei com um único professor - mas porque me apetecia. Ás vezes apetecia-me trepar uma grade - considerado o mais hediondo crime na comunidade salesiana. Outras vezes apetecia-me ir á aula de catequese ou ao coro. Uma vez apeteceu-me acabar com o stock de colheres da cantina - pedi a todos que partissem uma por dia. Mas outra vez apeteceu-me abraçar o Sr. João - o funcionário mais punk da história - e agradecer-lhe por tudo o que nos ensinou. Nunca foi uma questão ser reivindicativo ou rebelde - só uma questão de ser livre. Um dia apeteceu-me ir ao colégio à noite e divertidamente destruir tudo o que me aparecia à frente, ao colégio apeteceu-lhes expulsar-me - totalmente legítimo.

Ir para a escola pública era o sonho do punk - finalmente podia andar de skate, mas nem sabia; dizer palavrões! Mas a que propósito?; e até trepar as grades, mas para quê? - uma coisa que o punk não sabia é que o punk vive das regras: se não há regras, não há nada para contrariar. Lá os professores queriam mais baldar-se às aulas que eu. Aos alunos apetecia-lhes fazer fogueiras durante a aula, nunca nenhum professor se opôs. À porta havia mais ganzas que cigarros - no final de contas o tabaco nem altera o estado de consciência. Agora que finalmente podia decidir o que fazer, o que é que eu ia fazer? O sonho do punk era afinal um pesadelo.

Ser um punk estudioso deu-me liberdade para escolher o curso que me apetecesse. Estava indeciso entre belas artes e o técnico. Fiquei logo surpreendido quando o meu pai se ofereceu para me guiar numa visita à Faculdade de Belas Artes - mal sabia eu que me esperavam longas horas de “É isto que queres? Vir estudar para a rua dos paneleiros?”, e “homens nus?” ao passarmos por uma réplica em gesso de David “é isso que queres estudar?”, “é isto que queres para a tua vida?” junto aos freaks do pátio “Ser maricas e drogado?”, e afins… Adivinhem que curso acabei por tirar - fds, punk pa crl.

Na loucura de belas artes, parecer normal (no sentido mais aborrecido da palavra) é a coisa mais punk que existe - por isso todos os dias enxotava a minha camisa padronizada nas prístinas calças beges ou suavemente coloridas e pregava os meus ideias neoliberais de cadeira em cadeira. Belas artes é punk - é punk porque não quer saber de empregar alunos, ou de os preparar para o mercado, tem uma única missão: ensiná-los a ser livres e isso é punk. E foi exatamente isso que me ensinou - mas agora que era livre o que é que ia fazer?

Não fosse este meu espirito punk talvez fosse agora um beto igual aos outros trinta mil betos de Lisboa, a tirar um curso daqueles básicos porque empregam muito: tipo gestão ou marketing ou qualquer coisa assim. Talvez afinal o punk tenha mesmo morrido e não é pintar o cabelo que o vai ressuscitar.

Escrito em 15 de Fevereiro 2021