I
As cores de outono findavam mais uma tarde de Isabel. Esta era a sua hora preferida. Passeava-se diariamente pelo jardim milenar acolhendo o ar de finitude. A cidade dessarrumada preparava todos aqueles desconhecidos para o descanço. Pairava uma urgencia ansiosa pelo repouso, uma despedida já muito esperada das preocupações laborais. Adorava-a por senti-la profundamente. Toda aquela leveza que os traseuntes traziam aos ombros enchia as ruas com aromas de soltura. Tornavam-se livres as vidas e por isso bons os espaços. Obrigações tornavam-se volições. O labor, lazer. Os sacríficios, recompensas. Abria há meses um mesmo Balzac. Passava páginas inteiras olhando para as palavras. Mas nunca lhes retia qualquer sentido. Preferia antes as que lhe arrombavam os ouvidos. Aprendia com os diálogos mundanos das vidas alheias o que nenhum livro até hoje foi capaz de expressar.
Distraída, supreende-se. Sentou-se junto a ela alguém. Alguém que na orelha carregava um pau de carvão. Afastou-se por instinto. Temia sempre avanços indesejados dos homens desconhecidos. Mas ao ver-lhe as mãos cinzentas e o ar cordial, apazigoou-se. — Sou pintor - disse-lhe ele; Abriu um bloco de retratos que poderiam certamente ser confundidos com fotografias. — Preciso de treinar. - confessou-lhe humildemente; Queria, um dia, conseguir pintar todas aquelas coisas que achamos inexpressáveis. E que a prática intencional e diária era o requisito mínimo. Como tal, queria desenhá-la; O sim amarelo foi pela simpatia emanente. Mas também pela nobreza da causa. Se alguém conseguisse expressar o que ela sentia naquelas tardes, talvez o mundo pudesse convalescer.
Então, ele virou a página, e olhou-a em modo preparativo. Ela, desconcertada, nem sabia bem como se pousar. Olhou lá para o fundo e deixou-se estar. Focada decifrava, pela visão periférica, os gestos rápidos e instintivos do pintor. Fugia-lhe a mente dos burburinhos para a respiração. A coluna erte e a posição fixa evidenciavam o ciclo toraxico. E ao mesmo ritmo, ouvia o arranhar áspero no papel. Imaginava as maçãs do seu rosto a brotarem devagar. As pálpebras a nascerem-lhe como pétalas de narcisos. Grutas furarem um nariz que nunca cheirou nada. Nuvens, no céu da boca, unirem-se aos montes e em direção ao exterior delinearem robustos lábios. Puxados um a um, do enorme descampado de escalpe, enlongarem-se com pressa compridos cabelos. Vales formarem-se nas orelhas, rios salobrar na íris. Até que ele terminou. Agradeceu-lhe e deixou-lhe o desenho. Mas por medo, ou talvez vergonha, ela foi incapaz de o espreitar.
II
— O que seria… - indignou-se o namorado; O convite por escrito no verso parecia-lhe indecente. Por princípio, ela concordava. Mas incomodava-se por não ser o mesmo, o dele. O princípio para ela era a fidelidade. Mas para ele a posse. Ele agia como dono do corpo dela. E quando isto se tornava evidente, a discussão era inevitável. Ele irritava-se por ela não se reconhecer como sua propriedade. Ela por ele achar que assim devia ser. Nestes momentos era fácil esquecer toda a cumplicidade que construíram. O ódio pela tese de outrém dava primazia. Ao ponto de ela sugerir aceitar.
Equanto ele se enraivecia pela mera sugestão, ela encontrava naquela representação, tudo o que nunca vira ao espelho. A gravilha, que o grito dele fazia saltitar, levava-a ao quarto da infância onde levara semelhantes ralhetes. Já que o seu pai também a tomava como sua. E naqueles olhos de pequenos milímetros estavam todas as suas lágrimas por chorar, e a acima de tudo, a força para agir.
Quando mais calmo, ele veio pedir desculpa. Mas o beijo de reconciliação parecia vir infetado ou sujo. E mesmo já deitada, não conseguia tirar os olhos daquela folha de papel.
III
Abriram-lhe a porta antes de ela se quer bater. O que não deu chance às incertezas de sobreviver. Isabel percorreu o corredor longo lentamente. Revelavam-se, um a um, pendurados nas paredes, pedaços de corpos pintados. Mãos, e torços, e pernas. Ao fundo, estava o pintor de camisa manchada e moção expectante. Mal deu por ela, desapareceu. Só já no salão grande e naturlamente iluminado, voltou. De livro debaixo do braço e expressão anfitriã. — Tem de ler este dele. É sobre um pintor. - e ofereceu-lhe;
Pôs-se a empilhar uns fardos, e mover uns paineis. Até a fazer sala só falava do ofício. Ela escondia o nervosismo com simpatia e goles curtos. Mas todo aquele controlo, empatia e assertividade, davam-lhe a calma de que precisava. Já atrás do biombo assombrou-a uma vergonha antiga. Da praia, que virou passerele. Das danças, que passaram de diversão a provocação. E daquele olhar dos homens. Mas quando saiu, o pintor nem reparou, distraído com as tintas. E ela ficou mais segura.
As mãos ásperas agarraram-lhe os ombros e levaram-na ao palanque. Desapertaram o laço do robe, deixando-o à mercê da gravidade. Fria, com apenas dois toques, um leve no braço, outro quente no pescoço, Isabel era guiada por instinto. Assim o pintor arqueava-lhe membros, ou torcia-lhe o tronco, a gosto. Quando satisfeito, afastava-se. Mas para depois voltar. Ajuste atrás de ajuste. Até à posição ideal.
O silêncio era bom. Enaltecia o cheiro da tinta, a rugosidade do chão, e o clima criativo. Corpo perene mas tudo se movia. Trepadeiras tendavam-lhe o pescoço, agarrando-se aos recém brotados caules claviculares. A chuva ia enchendo devagar os ganglios ventriculares pendurados. Os ventos fortes empurravam areia num deserto abdominal de planaltos e depressões. Onde se acumulava frutose. O ar que inspirava insuflava simetricamente as ramas verdes que se iam tornando menos espessas até ramificar nas pontas. E tudo se ia pondo no sitio certo. A folhas davam sombra aos frutos, e a chuva dava água às plantas. E tudo fazia sentido.
O pintor, como se de vicio se tratasse, repetia e repetia. Nova tela, nova posição. E a cada repetição, Isabel via a criação a tornar-se mais eficiente. Chovia o suficiente para regar os decampados, e parava antes de enxaguar as flores. Mas também mais verdadeira. Nos vales do areal estavam as pegadas dos seus turistas. Nas montanhas as crateras dos desastres naturais. E por isso todo o entusiasmo de ser pintada trazia agora uma extrema vergonha. Corando-lhe as orelhas. Agitando-lhe o pulso. Secando-lhe a língua. TRUM.
Aaah! - enraiveceu-se o pintor, ao atirar a tela; Rodopiava-se de impanciencia. Como quem tem na ponta da lingua algo, que por mais que tente, não consegue dizer. Ela só queria vestir-se, urgentemente. Tapar tudo o que se estava a descobrir. E ao levantar-se, em esforço ineficaz de se tapar. — Isabel, não te mexas! - berra em admiração - É isto, é isto! - de desespero imediatemente curado; Obedeceu efusivamente em posição envergonhada. E tudo foi veloz. Os gestos guiavam tempestades. Enraiveciam os marés. Destornavam as copas. E tudo se agitava, tal era crueza com que pintava. Ela sentia na pele cada rasgo de tinta, dos rebentos brotados com urgência. E numa só lágrima, veio-lhe aos olhos, tudo o que ficara por chorar.
Devagar, o pintor dirigiu-se a Isabel. E olhando-a, com o seu polegar rugoso, limpou-lhe o choro da face. E o sol imediatamente voltou. O céu nunca esteve tão limpo. Os campos tão coloridos. O mar tão sereno. E tudo ficou completo. Acabado. Final. Com esse mesmo dedo precionou-a na tela. E afastou-se. Expirou. — Podes vestir-te;
Quando abriu o cortinado, já tinha a sala e o cavalete vazios. Levaram-lhe á porta e equanto lhe agrediciam em nome do pintor, viu-o lá ao fundo, em frente à mesma tela, de ar atorodado, extasiado ou até confuso.
À porta, o jardim conhecido tornava-se desconhecido. Sentou-se, como sempre. E pela primeira vez, ao abrir o livro que acabara de receber, colheu-lhe toda e cada palavra, até a tarde acabar.
IIII
Os cocktails prentiosos entre fumo de cigarros levianos deixavam-na nervosa. Juntavam-se, à porta da galeria, olhares julgadores. E nem o vestido que escolheu a dedo, nem as horas que passou ao espelho, a conseguiam acalmar. Entrou em busca do pintor, o único que a podia salvar do embaraço. Mas foi em vão. Porque o barulhento burburinho que echia a sala era sobre ela. Mesmo que ainda não o soubessem. Incumbiu-se então com uma nova missão: encontrar a tela. Eram várias dezenas espalhadas pela sala. Com partes do seu corpo em todas. Agradavam-lhe os comentários alheios. E reconhecia os sinais, as sardas, ou as orelhas. E orgulhava-se de ser matéria prima. E a fonte desconhecida de todo aquele alarido. Mas só uma obra estava tapada. Grande e coberta com pano. Só podia ser esta.
Quando o pintor entrou, a sala calou-se. E enquanto falava às pessoas, todos olhavam para ele. À medida que os cumprimentos iam ficando mais proximos de Isabel, mais ela temia a vergonha se ele lhe falasse. E com o passoubem ao engravatado mesmo ao seu lado, até conseguia ouvir o seu próprio coração. Ele agarrou-lhe a cabeça, beijou-lhe a testa, a agradeceu-lhe. Paralisada não respondeu, já que todos aqueles olhos estavam nela. E tal como no atleier, guiou-a pelo pulso até ao gigante coberto. A outra mão agarrou no pano. E o que ele disse depois, ela não conseguiu ouvir. Nem a sua voz convicta, nem o silencio mudo da sala, a tiravam do nervosismo. Os olhos estavam todos na tela, então ele puxou o pano.
Uau. Isabel parou em estado de choque. Era tudo. Estava tudo entre quatro arestas. Era ela. Toda. Os problemas com o pai. Os dramas com o corpo. O desejo insaciavel de mudar. O medo de morrer, ou de viver em vão, e começava-lhe a faltar o ar. Estavam as coisas que nunca devia ter feito. E a maldade que as movia. E já sentia a face humida a secar. E quando olha à volta. Vê que estão todos a vê-la. Inteira. E cai em si. — Párem, por favor! - pede-lhes agitada; Mas o olhar manteve-se. Todos ignoraram. — Por favor, não olhem! - implorou-lhes; Focando-lhe atenção, mas nenhuma ação. O silêncio mantinha-se. Então, usou as suas mãos tremidas e frias, e tentou tapar os olhos de um deles. — Por favor! Párem! - apelou em desespero; E a sala, talvez por habito pós-moderno, mantinha cerrada a observação, agora neste evento. A vergonha era tal que já soluçava a frustração. De braços finos esticados com toda a força, tentou desesperadamente cobrir a tela. Abanava-os exasperadamente á sua frente. Chorando o mote — Não olhem, vá lá, não olhem!; E até os seguranças se mativeram a observar. Com toda a calma, o pintor pede-lhes que tapem e retirem a obra da galeria. Fazem-no ao som do choro de Isabel. E onde estava a obra, ficou ela, ecarpada escondendo-se em lágrimas. E quando finalmente parou, a sala aplaudiu.
V
As chamadas não atendidas tinham todas o mesmo nome. E quando chegou a casa, ele já estava à espera. — O que é que é esta merda, Isabel?; As suas tentativas de explicar foram em vão, e os gritos sobrepunham-se. — Eu tenho que saber pelos os meus amigos que a minha namorda é uma puta?;
Quanto mais ele falava mais ela chorava. Como é que ele não vê? — Nem pensaste em mim? Não pensaste que me podia magoar?; Como é que ele não vê? Deveria ser ele quem a conhece melhor. Como é que ele não vê? Uma sala cheia desconhecidos viu, o que o seu namorado era incapaz de ver.
Então ela agarrou-lhe numa mão e pô-la na sua mama. — E só isto que eu sou para ti?; Acariciou-lhe a orelha e aproximou-se com cara. — É só isto que eu sou para ti?; Ele, nem no meio da raiva, conseguia esconder o seu entusiasmo infantil. E já que estavam no hall, ela abriu a porta, e saiu.
VI
Havia vários sinais de que o agora ex-pintor tinha cumprido com o acordado. A fachada do atelier perdeu tudo o que a distinguia de um espaço residencial. E via-o, todos os finais de dia, de ar académico, regressar de belas artes.
Sempre que passava no jardim, ele acenava confiantemente com cabeça. E nessa rotina cúmplice de troca de olhares, ela não conseguia senão imagina-lo de tela gigantesca, no seu quarto mais privado, a vê-la. E não tinha um pingo de vergonha.
Escrito em 6 de Abril 2025