A Casa Que Me Ofende

Não gosto de me queixar deste tipo de coisas. Põe me numa posição de arrogância e alguma inconsciência do luxo que tenho em poder ter este tipo de preocupações. Por isso mesmo sempre achei que era um tipo de pessoa totalmente adaptável a qualquer ambiente - que a minha satisfação era independente do mundo que me rodeia: que podia viver num bairro social, ou numa trincheira, que me sentiria igualmente bem - mas claro que é fácil dizer isto rodeado de beleza e alheado do feio.

As belíssimas casas novecentistas onde sempre vivi nunca ocuparam muito a minha consciência, sempre lá estiveram e nunca lhes dei devido valor. Após um devaneio de um ano num challet (com beleza devida) na idealizada vila junto ao Tejo: a Trafaria - em que conhecia tão bem as senhoras da praça como o meu irmão - decidimos finalmente voltar a Campo de Ourique, mas agora para uma casa sensivelmente um século mais nova. Á primeira vista o pequeno apartamento ao pé do jardim da parada pareceu mais que ideal - estritamente o necessário - no entanto vivia completamente oblívio ao assombramento que os “progressos” deste curto século me viriam incutir. As cores dissonantes da fachada do prédio (cor de rosa e verde - ?) serviram logo de presságio - como uma espécie de insulto gratuito cuja intenção é só ofender por ofender - ignorei porque afinal “o que interessa o prédio? O que interessa é lá dentro”. Mas lá dentro tudo o que para os modernistas é considerado luxo, para o meu olhar arcaico se assemelha mais a lixo.

É logo à entrada do prédio que está aquela coisa que sempre vi na casa dos outros mas jamais na minha - um elevador - este cubículo assustador no qual tenho medo de entrar desde miúdo. Não sei o que me repele tanto neste ser metálico, mas sempre que entro num o meu coração começa a palpitar e só quero sair, cada segundo que passo no elevador parece uma eternidade. Como é obvio que nunca andei (e nunca vou andar) no que me leva a porta do apartamento. Começando pelo ar condicionado - como se a simplicidade bela da janela aberta totalmente submissa aos desejos de invasão da brisa natural não fosse suficiente para controlo da temperatura interior - a artificialidade tenebrosa da simulação de aragem cuja previsibilidade e ruído são profundamente incómodos e ainda assombram uma parede de cada divisão com um asqueroso e barulhento paralelepípedo branco cuja função principal parece ser arruinar a beleza dos já tão queridos quadros e mobilia que o rodeiam. Como se isso não fosse suficiente escrutínio ainda insiste em arruinar-me o que deveria ser o mais prazeroso dos espaços da casa - a varanda - que agora está destinada a carregar uns horrorosos caixotes de plástico (com enormes turbinas) que emitem ainda mais horrorosos sons (chiares e grunhidos) que arruinam o deleite de qualquer atividade no espaço exterior - quer de leitura, escrita, ou simples contemplação quotidiana - e ainda conseguem largar umas esporádicas pingas de nojo do segundo andar ao comum passeante na minha rua.

Como uma espécie de ritual cultural, parece que todos os apartamentos em redor adotaram o mesmo fascínio cego por esta maquinaria de vento e se o ruído de uma bobina é incómodo, imaginem o estrondo de um quarteirão inteiro - um coro imponente e desafinado de motores que aceitam qualquer propulsor capaz de rosnar: os grandes das garagens e lojas, e os pequeninos do sótão da velhinha, são todos bem vindos a participar nesta excruciante e infinita sinfonia. Gostaria que fossem só os meus ouvidos a sofrer do ataque enervante dos AC mas ainda emitem um cheiro a vela recém apagada que tornam cada segundo nesta casa semelhante ao do momento em que me apercebo que estou um ano mais perto da morte - o apagar do bolo ao fazer anos. E claro que este mau gosto da vizinhança por métodos de controlo de temperatura não vem só e reflete-se em todas as outras decisões estéticas do quarteirão - da janelas das traseiras vêem-se varandas fechadas com alumínio e vidro fusco, prédios pintados de cinzento, janelas cobertas com rede, cores dissonantes, escadarias em betão…

(Sempre que me quis deitar em chão quente sempre procurei aquele espaço ao pé da janela onde bateu recentemente o sol, jamais imaginei ter resistências elétricas sobre o soalho flutuante - que absurdo)

É uma casa que arranja mais e mais formas de me ofender os sentidos - cheiros, sons e imagens desagradáveis - mas de resto… Parece-me que o sonho dos modernistas é sair do cubículo a que chamam casa para depois entrarem no cubículo que chamam elevador para o cubículo que chamam metro e ir para o cubículo que chamam trabalho e repetir o processo de volta. O céu de um modernista é o meu inferno.

E só de pensar que se o Tiago da casa antiga lê-se este texto me acusaria de ser um idiota por dar relevância a algo tão insignificante e que o único critério para a casa perfeita é lá conseguir dormir, mas mal sabia eu que um dia a fealdade do modernismo me manteria acordado toda a noite.

Escrito em 24 de Dezembro 2020